Tenho pensado cada vez mais na problemática do Rasganço. Sou finalista na Universidade de Coimbra, e estou à espera que saia a minha - espero que - última nota, pelo que já me começam a perguntar se vou fazer Rasganço quando me formar. Embora esta seja uma pergunta automática, perguntada com o mesmo interesse que se pergunta
Então, essas férias?
aos colegas no fim da época estival, sempre que a ouço fico a matutar no papel do Rasganço na tradição académica coimbrã. Toda a gente sabe que em Coimbra a Universidade e o espírito académico tomam uma dimensão diferente do resto do país. A cidade cresceu devido à Universidade, e esta desde cedo influenciou a economia e a política no município, bem como a cultura local. Existe portanto em Coimbra uma forte tradição académica, explicada por anos de história e ligada a uma altura da vida que deixa saudades. Dessa tradição derivam códigos e regras de conduta para os estudantes, festas como a Latada e a Queima das Fitas, muita bebedeira e claro, a praxe. Jovial ou ridícula, toda a praxe tem um propósito, uma razão de existir. Mascarar os caloiros e fazê-los passar as passas do Algarve é um ritual que, quer se ache este argumento decrépito quer não, realmente ajuda as pessoas a conhecerem-se num ambiente de festa, fazendo-se mesmo grandes amizades nessas alturas. O cortejo da Queima, a festa académica mais badalada, é uma festa municipal como tantas outras que existem pelo país, sendo que nesta as famílias e amigos da terra (antigamente, mais do que agora, a maioria da massa estudantil era de fora de Coimbra) vêm ver o estudante quase licenciado no seu ambiente de festa. A Latada, ou festa de recepção ao caloiro, é isso mesmo, uma festa em que o estudante noviço é o alvo de todas as atenções e nesse dia conhece imensa gente e uma parte típica da cidade, devido ao percurso efectuado pelas ruas. Enfim, existem bastantes pormenores ainda, como as serenatas na Sé Velha, o traçar da capa, a queima do grelo, a assinatura das fitas, etc. Toda uma aura de picuinhices ligadas ao percurso universitário que têm piada e que apenas fazem sentido em Coimbra. Mas o referido percurso universitário termina com o Rasganço, e é aqui que a porca torce o rabo. O Rasganço funciona da seguinte maneira: quando um estudante acaba o curso, combina copos com os seus amigos que lhe rasgam o traje académico por completo, deixando apenas e por vezes a gravata e os punhos. No caso das estudantes-fêmea, é-lhes permitido manter alguns farrapos, ficando na maioria dos casos a ver-se apenas o soutien. O finalista, completamente etilizado, é então solicitado de uma forma curiosa. Completamente nu, corre atrás da capa do traje que os seus também ébrios amigos lhe negam, fugindo e colocando a capa em lugares de difícil acesso, como no cimo de estátuas ou dentro de um autocarro em movimento. Ora, o que eu tenho vindo a dizer é que todo o aspecto da tradição académica de Coimbra tem uma razão de ser. Mas por mais que dê voltas à cabeça, não consigo entender a necessidade que quase todo o estudante finalista sente de ser humilhado quando devia era estar orgulhoso. Rasgam-lhe o traje porquê, porque não vai mais precisar dele? Mas Coimbra toda ela é saudade e nostalgia, porque não guardar a roupa que tanto valor sentimental tem na altura do fim do curso? Ela nem é propriamente barata! E a nudez da maioria dos estudantes universitários, que passaram os últimos cinco ou mais anos a beber cerveja e a cozinhar inexperientemente para eles próprios é algo que - acreditem - é preferível não ver. E ainda há a questão das fotografias dos rasganços. A maioria delas é tirada de noite, obviamente, com flash, pelo que o resultado é uma imagem de um corpo branquíssimo numa posição estranha, com um cu cheio de borbulhas e uma cara de alcoólico, e tudo o resto à volta extremamente escuro, onde se se olhar com atenção consegue distinguir-se uma cara amiga. Portanto, depois desta bela festa divertida, fica-se com fotografias lindas para recordação! Resumindo: acaba-se o curso, é-se um adultozinho, e está-se todo bêbedo e todo nu a correr atrás de um trapo com uma mão esticada e outra a tapar a genitália, com todos os nossos amigos a rir à nossa volta. Acho que não é de estranhar que eu não queria fazer isso, apesar de defender fervorosamente todos os aspectos da tradição académica. E como eu pensam uns quantos. Não muitos, mas é suficiente para fazer quorum. O Rasganço é um aspecto da tradição que está tão decalcado como qualquer outro, pelo que é difícil abjurá-lo isoladamente. É um bocado como não ver o CSI. Toda a gente vê, sentimo-nos mal. Descobrimos alguém que também não vê, sentimo-nos melhor. Por isso, quando sou abordado - como tem acontecido com frequência ultimamente - com a pergunta
Vais fazer Rasganço?
eu fico um bocado hesitante, a pensar que mais valia que me tivessem perguntado
Viste o CSI ontem?
ou
Então, essas férias?
porque a intenção simpática com que se fazem essas perguntas é exactamente a mesma, mas eu não gosto de admitir que não quero que me vejam nu. Para além de que para ver a minha genitália é necessário trabalho e mérito. Não é assim à papo-seco. |