• "Um blog do cacete!" - Folha de São Paulo

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    sexta-feira, janeiro 26

    Achas que eu alguma vez soube alguma coisa?

    Agora esquece, não adianta, vou-me embora. Não esfregues os olhos, não comeces a chorar, não te abraces a mim, não me encharques o ombro de lágrimas que o casaco é novo e estraga-se. É irónico chorares logo no ombro onde penduro a mochila que contém o que preciso para viver longe, mas apesar de ser irónico é o braço que está ligado a esse ombro que te abraça debilmente. O outro braço não abraça porque tem na ponta uma mala com um saxofone lá dentro. Sim, é isso, acho que não é não querer que me esfregues os olhos, não é não querer que me abraces, não é não querer que chores, escolhe o ombro à vontade, que interessa o casaco, que se lixe o casaco. Não me podes é pedir que te abrace com força com as duas mão porque tenho o saxofone na ponta de uma delas. Não é por não saber o que fazer quando tudo por dentro de nós está corroído. É um cliché dizer que é um cancro mas na verdade é mesmo de um cancro que se trata e agora é tarde, devias ter pensado nisso antes, esquece, não adianta, vou-me embora. Não me importo que chores aí nesse ombro que pela parte que me toca nem é meu, é de um sujeito qualquer que neste momento sabe melhor do que eu o que é o perdão. E não só não é perdão aquilo que mereces como também não é perdão aquilo que devo fazer. Não sei o que mereces (achas que eu alguma vez soube alguma coisa?), mas sei que o que devia fazer era, no mínimo, retribuir o abraço. É por isso que é uma pena eu ter a mala do saxofone na mão: é que as pessoas às vezes não sabem mas é um instrumento delicado e não se pode pousar assim no chão de qualquer maneira.

    Pequeno conto com duas críticas positivas

    O rapaz trepou alguns metros pela encosta e encontrou-se no planalto das Montanhas de Gesso. Contemplou a paisagem desolada que o rodeava e foi invadido por um sentimento de melancolia bela. Tudo em redor era tão pesado, invernoso, contrastante, que era feio. Mas um feio que cativava. Era uma espécie de beleza lunar: o satélite natural é constituído apenas por areia e calhaus, e não obstante tem inspirado a humanidade desde os seus primórdios.

    Caminhou um pouco sobre a superfície branca. O planalto não se perdia de vista, mas era suficientemente grande para não se conseguir avaliar a distância que separa as suas encostas umas das outras. O rapaz demorou alguns minutos a atingir a encosta que dava para a Ilha do Rato, um banco de areia verde com uma casinha abandonada que parecia nunca ter tido telhado. Sempre tinha achado engraçado o facto de imensas ilhas minúsculas terem uma casa. Ninguém poderia viver ali.

    Olhou para sul. O céu carregava-se de negro, numa mistura de tempestade eminente e fumo fabril que se desprendia da fábrica de adubo. O fumo era arrancado das chaminés com tal velocidade que desenhava riscos compridos no ar e boiava para oeste na direcção da grande estátua de pedra que também era visível dali, a vários quilómetros de distância. Era para lá que soprava o vento, como é óbvio: os elementos adoram ídolos humanos.

    Sentiu uma gota de chuva a cair na cabeça. Pensou na ironia que era começar a chover logo quando ele estava tão longe do caminho de regresso ao mundo. As gotas multiplicaram-se-lhe no cabelo e começou a correr. As botas iam ficando brancas à medida que o gesso se levantava com as suas passadas. A chuva era torrencial quando atingiu a encosta por onde tinha subido, mas o rapaz ainda se deteve a ver a paisagem que agora que já não estava de costas se lhe revelava. A margem do rio era lodosa, espelhando que o nível da água tinha descido permanentemente e não devido a um capricho de maré. Sobre o lodo erguiam-se molhes de pilares compridos espetados no que outrora foi o leito do rio. Por trás de cada molhe havia barracas. Havia dezenas de molhes, dezenas de barracas, tudo por cima do verde do lodo e das plantas da margem, tudo a perder de vista.

    Então, em vez de descer das Montanhas, o rapaz sucumbiu à beleza dura que o planalto entregava, e deixou-se ficar a apanhar chuva na cara e no cabelo. Por lá ficou: se lá forem ainda lá está, faz sol mas na sua cabeça ainda chove.

    segunda-feira, dezembro 18

    Expertise em investimento imobiliário

    Transcrição (fazendo mais uso da memória do que de um fiel bloco de notas ou outro meio de registo, de preferência electrónico, e respeitando as regras de sintaxe atropeladas na generalidade das conversas quotidianas) de uma conversa com um oficial da GNR:

    "Conheço um cigano que tinha barracas em três cidades: Setúbal, Loures e Amadora. Quando cada Câmara decidiu deitar abaixo os bairros de lata, deu casas aos moradores das barracas de forma indiscriminada. Esse cigano conseguiu assim ficar com três casas novinhas: uma em Setúbal, outra em Loures e outra na Amadora. E eu que pago cem contos de renda de casa..."

    As ilações ficam ao critério de cada leitor.

    quarta-feira, dezembro 13

    A sabedoria infinita do Tó

    Que farei quando tudo arde?

    terça-feira, dezembro 12

    A suivre

    Às vezes é preciso pôr um parêntesis em alguns aspectos da vida para que se possa tratar de outros assuntos. Tem acontecido muita coisa: derivado a profundas alterações no meu quotidiano, na minha actividade, na minha localização geográfica, no meu ordenado, nos meus hobbies, na hora a que acordo, nas minhas pessoas e na minha psique doente em geral, já há cerca de quatro meses que não escrevo aqui. Durante esse tempo escrevi noutros lados, pensei em começar um novo blog que fizesse mais sentido neste ambiente, considerei até a hipótese de apagar este blog como já fiz uma vez. Mas passou-me rápido. Porque afinal, que diabo, não mudei assim tanto.

    Esperem ver alguma actividade neste bloco de notas nos próximos tempos. A escrita assemelhar-se-á a detritos deitados ao lixo pelo meu cérebro e reciclados pelo meu coração, mas vocês são pessoas fortes e vão conseguir aguentar.

    É contudo necessário separar o que foi escrito até aqui do que vai ser publicado de agora em diante. Por isso, cá vai:

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    quinta-feira, agosto 3

    There is a light that never goes out

    Hoje estive em Fátima. Neste local de peregrinação é possível observar todo o tipo de práticas religiosas levadas a cabo por seguidores fiéis da palavra de Jesus Cristo que cumprem a promessa de "ir a Fátima a pé" fazendo pequenos troços de cada vez e regressando no fim de semana seguinte ao ponto onde ficaram - como se de uma etapa desportiva se tratasse-, e a de "percorrer de joelhos o adro do santuário" utilizando para o efeito esponjas nas referidas articulações. Quando o visitante deste sacrossanto local consegue vencer a turba de mendigos que se aproveitam da consciência pesada dos transeuntes naturalmente mais propícios a dar esmola por estar mais perto do Senhor e parece mal não dar nada aos pobrezinhos,

    Quem dá aos pobres empresta a Deus

    acaba por, finalmente, ver coisas verdadeiramente cristãs. Existem vários locais de culto contíguos ao Santuário, há missas em simultâneo, decorações elaboradas que têm provavelmente origem nas Indulgências e um número infindável de franceses. Enfim, está criado o ambiente.
    Como hoje tive oportunidade de visitar este local de peregrinação e, mais por sorte do que por mérito próprio, consegui evitar o mar de pedintes, pude tirar as fotos que ali vêem mais acima. Os pensamentos que estas imagens desencadearam na minha cabeça fizeram-me crer que valia a pena fazer figura de parvo a tirar fotografias a letreiros com um telemóvel para depois poder escrever um post porreiro. Além disso, à minha volta só havia franceses, por isso se alguém me viu foram eles, e eu não me importo de ser criticado por avecs porque se vierem com merdas é só dizer que o Zidane queria era ter acertado um pouco mais abaixo no Materazzi que eles esquecem logo os letreiros de Fátima e começam a querer bater.
    Passo a explicar a que se referem os sinais acima. O peregrino que quiser acender uma vela em Fátima, apenas tem que seguir as placas que dizem "Velas" para encontrar uma "loja" com um grande stock destes objectos de cera em exposição. Há vários tipos de velas, cada qual com o seu preço. O peregrino escolhe as que quer acender, faz as contas e insere o total na ranhura (ver imagem). É o único sítio do mundo onde não se aceita Visa. Ninguém está a ver; ao caírem, as moedas embatem numa peça de metal que faz barulho, mas ninguém liga. Depois, o peregrino quererá acender a vela. Para isso, basta seguir as outras pessoas que também acabaram de comprar velas, que elas sabem para onde vão (foi o que fiz). Perto dali há uma fornalha gigante onde se colocam as velas para serem queimadas (há suportes para as pôr a arder como se espera que as velas ardam, mas o fogo é muito e derrete logo a cera). Nessa fornalha, o peregrino pode dar logo o uso à sua vela ou colocá-la nuns recipientes sobre os quais está a segunda placa da fotografia. Simples.
    Claro que isto levanta questões interessantes. Este processo espelha perfeitamente os princípios da religião cristã. Primeiro, Deus começa logo por dar um voto de confiança ao Homem, já que deixa a seu critério pagar - ou não - as velas que leva. Depois, é a vez do Senhor cobrar a confiança que depositou no Homem:

    ( ler com a voz gutural que todos os entes divinos todo-poderosos têm, ninguém sabe muito bem porquê) Deixa aqui as tuas velas que serão queimadas oportunamente, segundo os meus desígnios. As velas que aqui deixares não serão devolvidas à loja de onde vieram; vão ser mesmo queimadas. Mesmo. A sério, juro.

    As pessoas de espírito prático como eu concordam que seria muito mais económico devolver as velas à loja sem as queimar: poupa-se tempo, energia e dinheiro em velas novas. Mas isso seria uma espécie de pecado, acho eu: a Bíblia não é explícita sobre este assunto. Mais vale este "passar pela casa da partida e receber 2000$" divino e queimar as velas.
    Resumindo e concluindo: aqui temos um exemplo do que é a fé. Deus tem fé no Homem, e pede que este retribua. Quando o peregrino põe as velas, à confiança, nos recipientes para serem queimadas oportunamente, está a ter fé na Igreja e em Deus. Esta queima das velas é a metáfora perfeita. É um bocado como viver na aldeia e deixar a porta de casa aberta porque se sabe que ninguém vai roubar nada, mais pelo facto de se ser um pobre aldeão miserável do que por os vizinhos serem pessoas conhecidas. Afinal de contas, é de velas que estamos a falar.

    ... E não de cruzadas, inquisições e padres pedófilos que seduzem os membros jovens do seu rebanho por "também" vestirem calças de ganga e tocarem viola.

    quinta-feira, julho 27

    A Morte Melancólica do Rapaz Ostra

    Nas dunas, pediu-lhe casamento,
    à beira-mar se casaram.
    Na ilha de Capri celebraram
    esse tão grande momento.

    À ceia jantaram um prato sobejo:
    uma bela caldeirada de peixe e marisco.
    E, enquanto ele saboreava o petisco,
    no seu coração ela pediu um desejo.

    O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
    Mas seria um ser humano?
    Pois é,
    na verdade,
    tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
    tinha visão e circulação.
    Podia ouvir, podia sentir,
    mas seria normal?
    Isso não.
    Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
    foi o princípio e o fim de toda uma saga.

    Ela zangou-se com o doutor:
    "Esta criança não é minha.
    Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."

    "Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
    tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
    Se o seu filho é meio ostra
    não me venha acusar.
    ... Já pensou por acaso
    numa casinha à beira-mar?"

    Sem saber que lhe chamar
    chamaram-lhe Alves,
    ou, às vezes,
    "aquela coisa da espécie dos bivalves."

    Toda a gente se perguntava, mas ninguém sabia
    quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
    Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
    chamaram-lhe uma amêijoa e desataram a correr.

    Num dia azarado,
    Alves ficou encharcado
    à esquina da rua Miramar.
    Cabisbaixo,
    viu a chuva rodopiar
    pela sarjeta abaixo.

    Na auto-estrada, a sua mãe,
    à beira de um esgotamento,
    esmurrava o painel dos instrumentos -
    não conseguia conter
    a dor crescente,
    a frustração
    que a fazia sofrer.

    "Olha, querido", disse ela,
    "isto não é para ter piada,
    mas eu já não pesco nada
    e acho que é do nosso filho.
    Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
    mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."

    Ele bem se esforçou, com todo o denodo;
    tentou mezinhas e poções
    e tintura de iodo
    que lhe fazia comichões.
    Coçou-se e esmifrou-se e esfregou-se e sangrou.

    Até que o médico diagnosticou:
    "Eu não sei de ciência,
    mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
    Dizem que comer ostras aumenta a potência:
    talvez se comer a criança
    fique cheio de pujança."

    Ele foi pela calada,
    estava escuro como breu.
    Tinha a testa suada
    e nos lábios - uma mentira ensaiada:
    "Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
    mas nunca sonhas com o Céu?
    Nunca quiseste morrer?"

    Alves pestanejou duas vezes
    mas não ripostou.
    O pai tacteou o punhal
    e a sua gravata aliviou.

    Pegando no filho ao colo,
    Alves pingou-lhe a lapela.
    Levando a concha aos lábios,
    despejou-o pela goela.

    Depressa o enterraram junto ao mar
    - uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
    e para casa voltaram à hora do jantar.

    A campa do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
    Palavras escritas na areia
    prometiam a salvação de Jesus.

    Mas a sua memória perdeu-se numa onda de maré cheia.

    De volta à paz do lar,
    ele beijou-a a arfar:
    "Que tal uma rapidinha?"

    "Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."
    - Tim Burton

    quarta-feira, julho 26

    Crónica do verdadeiro Mijado

    Hoje, no boletim informativo da hora de almoço de um famoso canal de Carnaxide, surgiu uma notícia sobre um agricultor de uma aldeia trasmontana que tinha sofrido um acidente de tractor. Segundo as palavras do próprio, o veículo capotou e o acidentado senhor partiu o braço direito, a bacia e a uretra (sic). Sim, eu sei o que estão a pensar. Esquisito, no mínimo. Como raio é que se parte a uretra, que não mais que um furo? Pelos vistos, a resposta é: a capotar de tractor.
    As sequelas desse trágico dia fizeram-se sentir no corpo do agricultor. É completamente evidente que, com a uretra partida, se vai influenciar o fluir da urina. E o homem ficou 6 anos sem poder urinar pelas "vias normais" (sic), o que quer que seja que isso signifique. Felizmente, após várias intervenções cirúrgicas afortunadas, o aldeão conseguiu recuperar a capacidade de mijar de pé e, com isso, o natural orgulho masculino que daí advém. E o não menos importante braço também sarou, se bem que tinha menos influência no acto de urinar excepto na altura de sacudir.
    A televisão privada portuguesa, com o seu apuradíssimo faro jornalístico, viu aqui uma notícia. Não estou a ser sarcástico: eu também acharia que uma uretra partida é notícia. Dizia eu que foi feita uma notícia e, com efeito, o homem foi entrevistado. Durante a peça jornalística, um voz off relatava o sucedido enquanto passavam imagens do agricultor a conduzir o seu tractor pelos caminhos da aldeia. A certa altura, passam a conversa e pergunta então o repórter:
    - Não teve medo de voltar a andar no tractor?
    - Medo não, tive foi muito cuidado - observou sensatamente o agricultor -, porque agora sei que é muito perigoso andar de tractor e a gente pensa que pode sair do perigo sem pensar e depois acontecem acidentes.
    Neste momento, o diálogo foi intercalado com os conselhos de um bombeiro voluntário:
    - Os tractores são perigosos, mas vêm com precauções que poucos tomam. Por exemplo, as barras que protegem o condutor e impedem o veículo de capotar são sempre as primeiras a sair. De todas as vezes que há uma morte relacionada com um acidente de tractor, o condutor nunca traz as barras postas. Compreende-se que façam isto porque os carvalhos e os castanheiros são baixos e as barras estorvam, mas correm mais perigo assim (mais ou menos sic).
    Não sei se estão a ver o que são estas barras. São uma espécie de gaiola que se põe à volta do "habitáculo", que impedem efectivamente o tractor de capotar pois são altas e feitas de aço. Nas imagens da reportagem, o agricultor do mijo torto estava a andar de tractor, aldeia acima, sem estas barras.
    A entrevista prossegue e, certamente fruto de um grande planeamento e uma edição inteligente, o jornalista sai-se com:
    - Porque é que não usa as barras agora?
    O homem pareceu nem notar que se devia sentir embaraçado. Respondeu prontamente:
    - Porque somos desleixados. É preciso termos cuidados e tomar precauções, e às vezes achamos mais fácil fazer sem segurança mas depois corremos riscos - disse, num paleio muito parecido com o de anteriormente.
    Quando ouvi isto, fiquei inquieto. Primeiro, porque já conduzi tractores sem estas barras e na altura nem sonhava que me arriscava enormemente a ficar com a uretra partida. E segundo, porque fui assolado pela imagem de um pobre médico do interior desertificado a ter que pôr talas ou gesso na pila deste senhor pela segunda vez só porque ele não se dignava a montar a merda das barras no tractor. Não terá medo de morrer desta vez porque é estúpido ou porque já é velho e não vale a pena? É uma pergunta que, no fim da reportagem, o telespectador não vê respondida. Só se vê uma imagem - bonita até - do incauto aldeão a conduzir o seu tractor assassino em direcção ao pôr-do-sol, qual Lucky Luke do coração de Portugal.