• "Um blog do cacete!" - Folha de São Paulo

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    quinta-feira, julho 27

    A Morte Melancólica do Rapaz Ostra

    Nas dunas, pediu-lhe casamento,
    à beira-mar se casaram.
    Na ilha de Capri celebraram
    esse tão grande momento.

    À ceia jantaram um prato sobejo:
    uma bela caldeirada de peixe e marisco.
    E, enquanto ele saboreava o petisco,
    no seu coração ela pediu um desejo.

    O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
    Mas seria um ser humano?
    Pois é,
    na verdade,
    tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
    tinha visão e circulação.
    Podia ouvir, podia sentir,
    mas seria normal?
    Isso não.
    Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
    foi o princípio e o fim de toda uma saga.

    Ela zangou-se com o doutor:
    "Esta criança não é minha.
    Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."

    "Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
    tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
    Se o seu filho é meio ostra
    não me venha acusar.
    ... Já pensou por acaso
    numa casinha à beira-mar?"

    Sem saber que lhe chamar
    chamaram-lhe Alves,
    ou, às vezes,
    "aquela coisa da espécie dos bivalves."

    Toda a gente se perguntava, mas ninguém sabia
    quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
    Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
    chamaram-lhe uma amêijoa e desataram a correr.

    Num dia azarado,
    Alves ficou encharcado
    à esquina da rua Miramar.
    Cabisbaixo,
    viu a chuva rodopiar
    pela sarjeta abaixo.

    Na auto-estrada, a sua mãe,
    à beira de um esgotamento,
    esmurrava o painel dos instrumentos -
    não conseguia conter
    a dor crescente,
    a frustração
    que a fazia sofrer.

    "Olha, querido", disse ela,
    "isto não é para ter piada,
    mas eu já não pesco nada
    e acho que é do nosso filho.
    Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
    mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."

    Ele bem se esforçou, com todo o denodo;
    tentou mezinhas e poções
    e tintura de iodo
    que lhe fazia comichões.
    Coçou-se e esmifrou-se e esfregou-se e sangrou.

    Até que o médico diagnosticou:
    "Eu não sei de ciência,
    mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
    Dizem que comer ostras aumenta a potência:
    talvez se comer a criança
    fique cheio de pujança."

    Ele foi pela calada,
    estava escuro como breu.
    Tinha a testa suada
    e nos lábios - uma mentira ensaiada:
    "Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
    mas nunca sonhas com o Céu?
    Nunca quiseste morrer?"

    Alves pestanejou duas vezes
    mas não ripostou.
    O pai tacteou o punhal
    e a sua gravata aliviou.

    Pegando no filho ao colo,
    Alves pingou-lhe a lapela.
    Levando a concha aos lábios,
    despejou-o pela goela.

    Depressa o enterraram junto ao mar
    - uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
    e para casa voltaram à hora do jantar.

    A campa do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
    Palavras escritas na areia
    prometiam a salvação de Jesus.

    Mas a sua memória perdeu-se numa onda de maré cheia.

    De volta à paz do lar,
    ele beijou-a a arfar:
    "Que tal uma rapidinha?"

    "Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."
    - Tim Burton

    quarta-feira, julho 26

    Crónica do verdadeiro Mijado

    Hoje, no boletim informativo da hora de almoço de um famoso canal de Carnaxide, surgiu uma notícia sobre um agricultor de uma aldeia trasmontana que tinha sofrido um acidente de tractor. Segundo as palavras do próprio, o veículo capotou e o acidentado senhor partiu o braço direito, a bacia e a uretra (sic). Sim, eu sei o que estão a pensar. Esquisito, no mínimo. Como raio é que se parte a uretra, que não mais que um furo? Pelos vistos, a resposta é: a capotar de tractor.
    As sequelas desse trágico dia fizeram-se sentir no corpo do agricultor. É completamente evidente que, com a uretra partida, se vai influenciar o fluir da urina. E o homem ficou 6 anos sem poder urinar pelas "vias normais" (sic), o que quer que seja que isso signifique. Felizmente, após várias intervenções cirúrgicas afortunadas, o aldeão conseguiu recuperar a capacidade de mijar de pé e, com isso, o natural orgulho masculino que daí advém. E o não menos importante braço também sarou, se bem que tinha menos influência no acto de urinar excepto na altura de sacudir.
    A televisão privada portuguesa, com o seu apuradíssimo faro jornalístico, viu aqui uma notícia. Não estou a ser sarcástico: eu também acharia que uma uretra partida é notícia. Dizia eu que foi feita uma notícia e, com efeito, o homem foi entrevistado. Durante a peça jornalística, um voz off relatava o sucedido enquanto passavam imagens do agricultor a conduzir o seu tractor pelos caminhos da aldeia. A certa altura, passam a conversa e pergunta então o repórter:
    - Não teve medo de voltar a andar no tractor?
    - Medo não, tive foi muito cuidado - observou sensatamente o agricultor -, porque agora sei que é muito perigoso andar de tractor e a gente pensa que pode sair do perigo sem pensar e depois acontecem acidentes.
    Neste momento, o diálogo foi intercalado com os conselhos de um bombeiro voluntário:
    - Os tractores são perigosos, mas vêm com precauções que poucos tomam. Por exemplo, as barras que protegem o condutor e impedem o veículo de capotar são sempre as primeiras a sair. De todas as vezes que há uma morte relacionada com um acidente de tractor, o condutor nunca traz as barras postas. Compreende-se que façam isto porque os carvalhos e os castanheiros são baixos e as barras estorvam, mas correm mais perigo assim (mais ou menos sic).
    Não sei se estão a ver o que são estas barras. São uma espécie de gaiola que se põe à volta do "habitáculo", que impedem efectivamente o tractor de capotar pois são altas e feitas de aço. Nas imagens da reportagem, o agricultor do mijo torto estava a andar de tractor, aldeia acima, sem estas barras.
    A entrevista prossegue e, certamente fruto de um grande planeamento e uma edição inteligente, o jornalista sai-se com:
    - Porque é que não usa as barras agora?
    O homem pareceu nem notar que se devia sentir embaraçado. Respondeu prontamente:
    - Porque somos desleixados. É preciso termos cuidados e tomar precauções, e às vezes achamos mais fácil fazer sem segurança mas depois corremos riscos - disse, num paleio muito parecido com o de anteriormente.
    Quando ouvi isto, fiquei inquieto. Primeiro, porque já conduzi tractores sem estas barras e na altura nem sonhava que me arriscava enormemente a ficar com a uretra partida. E segundo, porque fui assolado pela imagem de um pobre médico do interior desertificado a ter que pôr talas ou gesso na pila deste senhor pela segunda vez só porque ele não se dignava a montar a merda das barras no tractor. Não terá medo de morrer desta vez porque é estúpido ou porque já é velho e não vale a pena? É uma pergunta que, no fim da reportagem, o telespectador não vê respondida. Só se vê uma imagem - bonita até - do incauto aldeão a conduzir o seu tractor assassino em direcção ao pôr-do-sol, qual Lucky Luke do coração de Portugal.

    quinta-feira, julho 20

    Ou uma faca de dois gumes

    "És eternamente responsável por aquilo que cativas."
    - Antoine de Saint-Exupéry

    A novidade é que isto é uma estrada de dois sentidos.

    quinta-feira, julho 6

    A magia do futebol

    é fazer aparecer um penálti do nada.

    quarta-feira, julho 5

    Achei isto necessário porque gosto de Alanis Morissette.

    E para meter conversa eu pergunto:
    - Então e que som é que tens aí no mp3?
    - Ah, é um CD de um grupo, não deves conhecer...
    Acabo a conversa por aqui e, como é meu apanágio, fecho-me no sótão da minha própria cabeça e vasculho-o à procura do sentimento mais adequado a esta resposta. Encontro-o logo. Era óbvio que o ia encontrar com facilidade, só quando preciso mesmo dele é que não sei onde está: intransigência. Devia tirá-la daqui mais vezes, está cheia de pó.
    Penso logo na aturada pesquisa que este meu interlocutor terá feito para encontrar uma banda com música suficientemente a seu gosto para a conseguir ouvir e, ao mesmo tempo, suficientemente desconhecida para se poder sair com esta tirada, tão vulgar nos dias que correm. O raciocínio que de certeza que usou foi o já bafiento

    1. Música é cultura.
    2. Se eu conhecer uma banda que pouca gente conhece é sinal que procurei o bastante no mundo musical para encontrar uma coisa "rara".
    3. Logo, o meu conhecimento musical (e cultural, ver premissa 1) é muito vasto.

    e é por isso que espano um bocado a intransigência, ainda que sem sair do sótão. O busílis, a meu ver, é que a música é um aspecto da cultura que chega a qualquer pessoa, pelo que para se ser erudito é preciso encontrar algo que ninguém ainda conheça. Um manancial deste tipo de lógica são aqueles que não dizem que gostam de música comercial. Eu cá acho que há música comercial boa. Senão, vejamos:

    1. Definição de "fazer música": combinar sons de forma a produzir um efeito agradável ao ouvido.
    2. A estrutura do ouvido e do cérebro do ser humano, bem como a interpretação dos sons como sendo agradáveis, por muito que varie com as preferências individuais, é quase igual em todas as pessoas. É nisso que toda a teoria musical se baseia, até o tão vosso conhecido dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó.
    3. Portanto, há músicas que, por serem simples, agradam a imensa gente.
    4. A música que agrada a muita gente é comprada por muita gente (música comercial).
    5. Logo, a música comercial cumpre a função de "fazer música".

    Não percebo o horror que as pessoas têm à música comercial. Há música comercial óptima, com óptimos intérpretes. Não é preciso ninguém esconder-se atrás de um Não deves conhecer para dizer que gosta de free jazz. O free jazz foi criado através de um experimentalismo por parte de músicos, e ainda é uma linguagem que só é entendida por alguns. Mas isto é só um exemplo. Quem gosta de música, ouve-a, e não precisa de ser um melómano.
    Pessoalmente, valorizo muito a opinião de uma pessoa que diz gostar dos Hot Hot Heat ou dos Zita Swoon sabendo que ela conhece, de trás para a frente, a discografia dos Beatles e gosta de uma ou outra do Robbie Williams. Porque essa pessoa ouve música com atenção.
    Daí que não tenha querido fazer o meu interlocutor cair na dura realidade. Afinal, gostos não se discutem, mesmo que sejam os dos outros, e muito menos se os gostos dos outros forem os de terceiros.

    E volto a pôr tudo no sítio porque não se pode aqui com o pó.